Provida de cinematográficas belezas naturais e pequeninas aldeias com casas com flores na varanda, a Calábria é mais que um lugar exótico e oferece uma gastronomia inigualável.
Por Fabíola Musarra e José Oswaldo Cascino Cardoso
Em frente à Sicília, no pé da bota italiana, a Calábria é banhada por dois mares: o azul e cristalino Mar Jônico e o não menos turquesa e translúcido Mar Tirreno. O estreito de Messina separa a Calábria da Sicília e torna única a região que tem um clima quente, cores intensas no mar, costas rochosas alternadas com as praias e natureza selvagem e misteriosa. A culinária é marcada por sabores fortes e genuínos, com tradições gastronômicas que fazem da Calábria um lugar original e repleto de magia.
Ao todo, a Calábria possui cinco “cidades” maiores (comunas): a capital regional Catanzaro, Reggio Calábria, Cosenza, Crotone e Vibo Valentia. Assim como em outras regiões da Itália, possui algo peculiar e mágico: a “língua”. Bem diferente do que é praticado neste que é um dos países mais visitados da Europa, o dialeto “calabrês” não é nada fácil de se compreender, mas preserva o sotaque e a sonoridade poética do idioma, além de manter a forma gestual que os italianos têm de se comunicar. É uma delícia de ver e de ouvir!
E é exatamente em função de o italiano usar os gestos e as mãos para se expressar que permite “conversar” com os calabreses no difícil dialeto falado por eles. Comunicação à parte, a Calábria é uma região propícia aos múltiplos gostos. Os amantes da natureza, os ecoturistas e os aficionados pela história podem desfrutar dos aromas e mistérios únicos no interior dessa região, desvendando cenários não poluídos, onde a paisagem ao longo das costas do Mar Tirreno e do Mar Jônico é alternada entre cinturões verdes, lagos azuis e cachoeiras.
Aos amantes da história antiga, a Calábria, berço da Magna Grécia, reserva fantásticos castelos, mosteiros, palácios, igrejas e cidades em que o ar transborda tradições milenares. O Museu Nacional da Magna Grécia (ou Museu Arqueológico Nacional de Reggio Calábria) é um dos endereços para quem deseja aprender um pouco sobre esse fascinante período histórico da humanidade.
É considerado como um dos mais importantes museus do mundo na área de arte da Magna Grécia, perdendo apenas para o de Berlim, na Alemanha. Instalado no Palácio Piacentini, em Reggio Calábria, o Museu Nacional de Reggio Calábria, além do acervo dedicado à Grécia antiga, também abriga preciosas coleções que contam a história da população romana desde os tempos pré-históricos.
Em seu interior, os apreciadores da arte podem conhecer os bronzes de Riace, integrantes do acervo do museu, onde também estão inúmeros achados arqueológicos da época greco-romana. As estátuas são um importante testemunho da Magna Grécia, obras que ajudaram a moldar a história dessa região para sempre. As estátuas representam dois heróis de guerra, um exemplo raro da escultura grega clássica.
Ao lado das esculturas de bronze de Riaci, um dos principais símbolos históricos da cidade, as ruínas (leia-se duas torres e parte de uma muralha) do Castelo de Reggio Calábria é outro ponto de referência histórico-cultural que merece ser visitado – a região montanhosa onde hoje existe o que restou do castelo foi, em tempos passados, a principal fortaleza da cidade, exercendo um papel vital no seu sistema de proteção.
A história do castelo, também conhecido como Castelo Aragonês, se confunde com a de Reggio Calábria, sobretudo a partir do século VI. Localizado na praça homônima, entre as vias Aschenez e Possidonea, o castelo, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, foi a sede do Observatório do Instituto Nacional de Geofísica. Porém, em 1986, parte de sua construção desabou e ele teve de ser restaurado. Em 2004, foi reaberto ao público, passando a ser um pulsante centro de exposições, com diferentes mostras de arte.
Dias de sol – Nos quase 800 quilômetros de litoral, a ensolarada Calábria tem praias lindíssimas, como Capo Vaticano, na província de Vibo Valentia, considerada uma das 100 praias mais bonitas do mundo. Vibo Valentia está localizada em um local panorâmico, de onde é possível admirar o Monte Etna com seu pico eternamente coberto de neve. Paradisíaca, é formada por uma longa faixa de areia fina, cercada por árvores centenárias e banhada por um mar de azul cristalino, povoado por uma fauna de peixes variada.
Considerada como uma das mais belas estâncias turísticas da Riviera dei Cedri (Riviera dos Cedros), San Nicola Arcella, um pequeno município ao Norte de Cosenza, é outro postal da província. Pequenina – tem pouco mais de 1.400 habitantes, a aldeia possui recantos e encantos de beleza inegável, com praias que se estendem entre Praia a Mare e a Scalea, com vista para um mar transparente.
Certamente, não atrai milhares de turistas, como seus vizinhos Praia a Mare e a Scalea, porém, guarda algumas das mais belas praias da Itália. A conformação de suas costas proporciona vistas surreais com enormes penhascos no Mar Tirreno abraçando a orla marítima por onde se espalham dezenas de praias protegidas pelas montanhas Pollino.
Inclinada nas encostas de San Nicola Arcella, a Baia de Eneias, como raramente é chamada a Praia do Arco Magno, é outro pequeno paraíso que vive bem distante dos badalados points invadidos por um incontável número de turistas, ostentando uma paisagem natural intocada que permanece alheia aos desenfreados hábitos de consumo das civilizações modernas e aos interesses econômicos de alguns setores de turismo, com a sua incontida construção de hotéis e empreendimentos de “lazer” de concreto.
Não é muito fácil chegar até lá. É preciso percorrer um caminho íngreme talhado na rocha. Ou, ir de barco. Mas, o esforço conduz a um cenário hipnotizante: na imensidão do horizonte desponta um imponente arco de rocha suspenso sobre o mar. No interior, há uma lagoa, com quase 30 metros de comprimento, em forma de meia-lua e tingida pelo azul em todas as suas infinitas tonalidades, do celeste ao cobalto e ao azul-marinho.
A baía da Praia do Arco Magno também é conhecida como Grotta dei Saraceni, em memória da resistência aos saqueadores mouros e sarracenos que tantas vezes invadiram aquelas terras. Hoje, o Arco Magno continua sendo um dos lugares mais poéticos da bucólica região ensolarada. Um monólito com uma abóbada tão larga que permite que barcos e nadadores aventureiros se divirtam abaixo dele.
Academias naturais – Os ecoturistas vão adorar visitar o interior da Calábria. Lá eles poderão ver os parques nacionais de Sila, Serre, Aspromonte e Pollino, classificado como os destinos naturais mais interessantes. A antiga vida vegetal de Sila, os riachos e pedras de Aspromonte e a rica fauna de Serre são algumas das belezas contidas na região.
As águas limpinhas e praias dessa região italiana não são apenas um suporte para aqueles que querem tomar um sol e pegar um bronzeado. Várias modalidades esportivas formam uma academia natural, onde é possível praticar windsurfe, kitesurfe ou mergulho, possibilidade que descortina o fundo do mar, com corais de cores vivas e destroços da Segunda Guerra Mundial.
Quem gosta de esportes de Inverno não precisa esperar a estação da neve. As várias estações de esqui da Calábria estão equipadas com pistas artificiais que possibilitam esquiar o ano todo. Os apaixonados pelos esportes radicais podem experimentar o rafting ao longo do Rio Lao ou ainda nos desfiladeiros de Sila.
Quer ainda mais emoção? Que tal percorrer o rio sem um barco? Simples. O esporte consiste em mergulhar na água descendo com uma corda nos trechos mais difíceis. A modalidade é chamada de canionismo e o apoio de guias especializados transforma o esporte acessível a qualquer pessoa.
Outra aventura que se pode praticar na Calábria é o orientação, um esporte que nasceu nos países escandinavos como forma de testar o senso de direção. Equipados com um mapa e uma bússola, os praticantes devem alcançar a meta no menor tempo possível. Eles podem escolher o caminho que quiserem, mas devem chegar a paradas intermediárias predefinidas. Já o parapente é outra opção radical que conduz o turista a desvendar as memoráveis paisagens calabresas sob a perspectiva de um novo ângulo.
Aromas e sabores – Emoções fortes e intensas também estão presentes na gastronomia da Calábria. Um exemplo é a famosa pimenta calabresa (pepperoncino), encontrada na maioria dos pratos típicos da região. De pão torrado com salsichas ou sardinha ‘Nduja (a pronúcia é duia) – chamado de “caviar dos pobres” – a peixes, molhos, massas e salsichas de porco e ‘Njuda, o salame típico calabrês. Macio e com pouca gordura, é feito com carne de porco e bem apimentado.
Os pratos com pesce stocco (merluza que é colocada para secar ao ar livre e depois reidratada) também são comuns no Sul da Itália, não só na Calábria como também em Messina, na Sicília. Na Calábria, o peixe de sabor forte e semelhante ao do bacalhau chegou pelas mãos dos normandos no início do século XII e hoje integra muitos pratos da gastronomia local. Caso do Pesce Stocco alla Ghiotta, com alcaparras, azeitonas e batatas.
Em terras banhadas por dois mares, nada mais natural que os pratos à base de peixes e frutos do mar estejam presentes. Apreciadíssimo, o Alici Scattiate é um dos mais populares deles. Na Calábria, o prato mediterrâneo é preparado com aliches frescos, que são refogados em muito azeite, orégano e, como não poderia deixar de ser, pimenta.
O forte sabor da gastronomia calabresa faz um contraponto com o doce sabor da cebola roxa de Tropea, originalmente protegida pela marca de qualidade IGP (Indicação Geográfica Protegida). Além de temperar os pratos, essa cebola é usada para fins curativos. Mas, os pratos calabreses que devem alimentar a alma e o estômago incluem ainda azeite extra virgem, vinhos, licores de bergamota, alcaçuz, cidra, ervas, mel e compotas.
Também se sentam à típica mesa calabresa os diferentes tipos de massas caseiras (strangugghs, fileja, maccaruni) preparadas utilizando métodos antigos e centenários. O Fileja com la ‘Nduja é um deles. Típica província de Vibo Valentia, a fileja é uma massa caseira longa e curva feita a partir da rotação de uma varinha de madeira bem fina. O prato é acompanhado por um dos mais ingredientes mais conhecidos da Calábria: o salame ‘Nduja
Para adoçar a vida e dar mais cor ao gran finale à viagem, a pedida é o Tartufo di Pizzo (trufa de sorvete). A receita original foi criada em 1952, em Pizzo, cidade próxima à Tropea, na Calábria. Surgiu quando o sorveteiro Giuseppe Di Maria, mais conhecido como Don Pippo, se viu em uma grande saia justa: no ápice de um casamento de uma família rica, as taças para servir a sobremesa aos convidados acabaram.
Desesperado e sem saber o que fazer, o sorveteiro decidiu improvisar e começou a modelar com as palmas das mãos a esfera de sorvete feita com chocolate e avelã e recheada com chocolate derretido. Depois, embrulhou a sobremesa com papel, colocando-a para congelar.
A ideia de Don Pippo não só deu certo, como atualmente o tartufo é consumido (e amado) em países do mundo todo, onde, além dos sabores originais, também surgem em versões que levam dois sabores de sorvete e cobertura de caldo de frutas vermelhas, como framboesa, cereja ou morango, por exemplo.
Buon appetito!
Crédito da abertura do texto: Chinalea di Sicilia e porto com barcos de pesca na Calábria, sul da Itália. Foto: RTEMagicC/Italia. Castelo de Scilla Ruffo