A caminhada da fé
Por Fabíola Musarra
Realizado há mais de dois séculos – o primeiro foi em 1792 –, o Círio de Nazaré é uma das maiores manifestações católicas do Brasil, tendo sido classificado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial, em 2004. Não é para menos. Todos os anos, no segundo domingo de agosto, o evento é o responsável por mais de dois milhões de romeiros se dirigirem ao Pará, onde é realizado na capital do Estado. Em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré, peregrinos de todas as idades, raças e classes sociais, vindos de todas as regiões do País, preenchem cada centímetro das ruas da cidade, engrossando a procissão que sai pelas ruas de Belém, numa comovente demonstração de fé na mãe de Jesus Cristo.
No trajeto que sai do centro de Belém, os fiéis percorrem quase sete quilômetros sob o forte sol que impera em todo o Estado. Muitos madrugam e não resistem ao calor, desmaiam, passam mal, mas não desistem de seguir de perto a imagem de Nossa Senhora, que também é a padroeira da Amazônia. Alguns peregrinam de joelhos, outros vêm pagar a promessa de segurar a corda da procissão, considerada o símbolo de maior penitência do Círio. No início da devoção da Virgem, nos séculos 18 e 19, ela servia para puxar o andor com a imagem da santa pelas ruas alagadas por onde passava a romaria. Hoje, fiéis disputam cada milímetro da corda, que se transformou em sinônimo do maior sacrifício físico feito em reverência a Nossa Senhora.
Mas a monumental manifestação religiosa de Belém não se resume apenas a uma caminhada de fé pelas ruas. Em todo o percurso, os peregrinos cantam, repetem ladainhas, se emocionam, choram e fazem preces, de agradecimento ou pedidos silentes para alcançarem graças que os mortais não lhes podem conceder. Caminham com esperança no coração. Alguns trazem velas nas mãos. Vale lembrar que a palavra círio se origina da palavra latina cereus (de cera), que significa grande vela de cera. Assim, esse é um item que nunca falta nessa imensa festa religiosa.
Quando chegam à praça Santuário de Nazaré, os romeiros são aplaudidos pela firme determinação de terem enfrentado quase quatro horas uma caminhada adversa e que exige a superação de todos os limites físicos humanos. Na praça a procissão termina, mas a devoção não. Afinal, é na catedral situada em interior que a imagem em argila de Nossa Senhora poderá ser vista (e tocada) durante 15 dias, período que ali permanece exposta para veneração dos fiéis.
Além da procissão de domingo, o Círio agrega várias outras manifestações de devoção à Virgem de Nazaré, desde a queima de fogos de artifício até uma romaria fluvial em sua homenagem. Também os moradores e católicos enfeitam as ruas da cidade e suas casas, tudo para homenagear Nossa Senhora. A devoção a Virgem de Nazaré, por sinal, chegou ao Brasil pelas mãos dos portugueses. Pelos inúmeros milagres a ela atribuídos, a fé na santa se espalhou por todo o País. Mas, em Belém, uma lenda associada à mãe de Jesus ampliou ainda mais o número de seus devotos.
Segundo a lenda, em 1770, o caboclo Plácido José de Souza estava às margens do igarapé Murutucu quando encontrou uma pequena imagem da Senhora de Nazaré. Humilde, levou a estátua de 45 centímetros de altura para a sua choupana. No dia seguinte, a imagem havia desaparecido de lá. Ele voltou ao igarapé e lá estava a santa. Por várias vezes, o episódio teria se repetido até que a imagem foi enviada ao Palácio do Governo. No local do achado, Plácido construiu uma capela, onde hoje se encontra a Basílica do santuário.
Passados mais de 20 anos desse episódio, mais precisamente em 1792, o Vaticano autorizou a realização de uma procissão em homenagem à Virgem de Nazaré, em Belém. Organizado pelo capitão-mor Dom Francisco de Souza Coutinho, na época presidente da província do Pará, o primeiro Círio de Nazaré foi realizado no dia 8 de setembro de 1793. Anos mais tarde, em 1901, por determinação do bispo Dom Francisco do Rêgo Maia, a procissão passou a acontecer sempre no segundo domingo de outubro, data que se repete todos os anos, numa majestosa manifestação da renovação da fé a Nossa Senhora.