Em busca dos herdeiros de Alexandre

Uma das “repúblicas” mais antigas do mundo está prestes a ser invadida. Não por algum exército inimigo, mas por uma enxurrada de turistas do mundo todo. Essa invasão modificará radicalmente os costumes e a cultura da pacífica Malana, um pequeno conjunto de 12 aldeias de montanha na província de Himachal Pradesh, no noroeste da Índia, ao sul do Himalaia. Para que ela ocorra, basta apenas que a estrada de acesso ao vilarejo fique pronta. Atualmente, só se chega até lá a pé, depois de várias horas de caminhada a partir de Jari, a cidade mais próxima. É esse isolamento que até hoje praticamente impediu o acesso aos viajantes.

Aos 32 anos, Alexandre, o Grande, já havia se tornado o comandante do maior império do mundo antigo.

Malana, nos últimos tempos, tem chamado a atenção de muita gente. Segundo uma lenda que tem sobrevivido à passagem dos séculos, Malana teria sido fundada por Alexandre, o Grande, depois da vitória dos macedônios contra o rei Poro, na Batalha de Hidaspes, no ano 326 antes de Cristo. De lá, encerrando o seu longo périplo de guerras e de conquistas, Alexandre deu meia-volta e retornou ao Ocidente.

Mas vários de seus oficiais e soldados teriam preferido ficar, estabelecendo-se em Malana e casando-se com mulheres da região. Estavam cansados das intermináveis campanhas militares travadas pelo seu líder. Em Malana podiam não apenas desfrutar da proteção que as montanhas circundantes representavam como manter-se à distância dos agentes imperiais de recrutamento militar.

Se a futura estrada colocará um ponto final no isolamento que há séculos tem garantido a preservação da cultura local, ela também possibilitará a antropólogos e sociólogos um acesso muito mais fácil ao vilarejo, para fazer os levantamentos necessários, inclusive testes de DNA, com o intuito de desvendar o mistério que envolve a origem dos malanis.

Antes de mais nada, é preciso dizer que esses supostos descendentes de Alexandre e de seu exército não nutrem nenhuma ambição imperial. Ao contrário, vivem de forma muito modesta, mas podem se vangloriar de um recorde: produzem o melhor haxixe do mundo, o chamado Malana Cream, reconhecido como tal até pela Copa Cannabis de Amsterdã, na Holanda.

A crescente procura de forasteiros pela famosa erva produzida pelos malanis (a maioria deles quer experimentar) é, aliás, outra ameaça à paz do vilarejo. Deixando de lado a questão do haxixe, outros fatos levam a crer que a teoria macedônia da origem dos malanis pode ser confirmada: apesar de indianos, os habitantes da aldeia têm cabelos aloirados, olhos puxados e pele clara.

Não é só. Ao longo dos séculos de isolamento, a população teria crescido em razão de um sistema fechado de casamento, do qual qualquer forasteiro é excluído, e de um dialeto somente compreendido pela população local.

Os malanis têm uma fisionomia particular: olhos puxados e claros, pele cor de âmbar, cabelos aloirados. Falam um dialeto todo seu, não têm nenhuma afinidade sociocultural e religiosa com as tribos vizinhas. São obrigados a se casar apenas com um componente da tribo.

A religião, os costumes e as leis locais, de seu lado, também contribuíram para isso. Até hoje, por exemplo, é vigente uma lei muito rígida segundo a qual os malanis não podem ser tocados por gente de fora da comunidade. Seus cerca de 1.600 membros acreditam ser tão puros que qualquer contato físico com pessoas de fora representa um sério risco de se tornarem impuros.

COMO ERVA DANINHA

O idioma de Malana é o kanashi. Parecendo ser uma mistura de sânscrito e de vários dialetos tibetanos, o kanashi não se assemelha a nenhuma língua falada na vizinhança, o que torna ainda mais difícil a sua compreensão para o visitante. O idioma também é considerado um dos segredos do vilarejo e os visitantes não têm autorização para usá-lo na comunicação.

Além dos turistas, a polícia volta e meia interrompe a paz de Malana. Em suas idas ao vilarejo, os policiais cortam todas os pés de maconha que encontram pela frente. Na briga contra a produção de haxixe, as autoridades locais sempre acabam levando a pior. O motivo? A cannabis (nome científico da planta) brota naquelas terras como erva daninha, ao redor das casas, nos jardins e nas montanhas que circundam Malana e, oficialmente, não são de ninguém.

Para coibir as tentações da carne e a eventual miscigenação, há placas espalhadas por toda a aldeia com os dizeres: No touching. One thousand rupees fine (Não toque. Multa de mil rúpias). Desse modo, os turistas que ali chegam em busca de belas paisagens e de serenidade não podem encostar um dedo em nada nem em ninguém em Malana.

Caso contrário, são obrigados a pagar a multa. As autoridades indianas garantem a autonomia da “Pequena Grécia”, como o vilarejo também é conhecido. Seus habitantes escolhem seu próprio Parlamento, com presidente e primeiro-ministro.

A INVASÃO DA ÍNDIA

326 a.C.: na primavera, Alexandre marcha em direção à atual Cabul (Afeganistão), onde é saudado como um aliado pelos reis de Taxila. Na região do Punjab – na Batalha de Hidaspes -, o rei Poro é derrotado e Alexandre o faz prisioneiro. Funda as colônias de Nicea e Bucéfala. No Rio Ifas (atual Rio Beas), seu exército, prostrado por incessantes chuvas e fadiga, recusa-se a segui-lo até o Ganges.

Apesar dessas dificuldades, o mito da origem macedônica e o Malana Cream têm alimentado a curiosidade de muitas pessoas em torno dessa pequena aldeia do Himalaia. Há muitos pesquisadores ansiosos para verificar se, efetivamente, o vilarejo é uma “ilha” de genes europeus que sobreviveu ao tempo. Antropólogos e sociólogos não veem a hora de estar em frente das casas de madeira e telhado de pedra em Malana, no Vale Kulu.

Há pouco, a Universidade de Upsala, da Suécia, e o Instituto de Estudos Tribais, de Simla, na Índia, uniram-se para criar uma equipe multidisciplinar de pesquisadores dispostos a resolver o mistério. Dela fazem parte médicos e geneticistas que conduzirão uma investigação comparada entre os genes dos modernos malanis e os dos gregos macedônios contemporâneos.

Linguistas, por sua vez, irão estudar as raízes profundas da estranha língua atualmente falada em Malana. Especialistas em história e na linguagem dos símbolos tentarão tirar a limpo se os malanis até hoje utilizam motivos simbólicos e alegóricos da Grécia Antiga em seus artefatos e obras de arte.

O professor P. K. Vaid, do Instituto de Estudos Tribais, já esfrega as mãos com a ideia de fazer o teste de DNA para checar se nas veias dos malanis corre de fato o sangue macedônico. “Suas características são europeias”, observa. “E mesmo o regime político do vilarejo pode ter origens gregas. É único.”

Mais cético, o sacerdote da aldeia não se cansa de repetir: “Não é verdade que o exército de Alexandre nunca tenha chegado aqui. Mas o nosso deus golpeou os soldados com balas e matou todos eles.” Traduzindo as palavras dele: estrangeiros em Malana nunca foram bem-vindos.

SERVIÇO

Como chegar por via aérea: O aeroporto mais próximo situa-se em Bhuntar, a 13 quilômetros de Jari, a cidade mais próxima de Malana.

Por via terrestre: Acesso por Manikaran, Jari ou Kulu, mas são várias horas de caminhadas por trilhas.

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