Há dois anos, um dos maiores alpinistas brasileiros, Vitor Negrete, morreu logo após ter chegado ao topo do Everest. A história de sua vida e de suas aventuras agora é contada em livro escrito por sua esposa.
Por Fabíola Musarra – publicado em outubro de 2008
Os olhos de Marina brilham. Revelam a vida e a fibra de quem vai em frente, apesar do duro golpe do destino. Nem um instante, porém, deixam de refletir a saudade que ficou guardada lá, no labirinto do coração. O tempo, senhor de todos os destinos, se encarregou de atenuar no calendário da memória as horas mais sofridas da perda. Mas restam as lembranças. Os sentimentos fortes pelo companheiro Vitor Negrete, pai dedicado de Leon e Davi. Os flashes de suas aventuras nos Andes argentinos, lá pelo Aconcágua, quando o alpinista brasileiro escalou a perigosa Face Sul do pico mais alto das Américas, feito conquistado por poucos no mundo. Ou de quando ele chegou sozinho ao topo do Everest sem oxigênio suplementar e sem ajuda dos guias da etnia sherpa, num ousado ato que lhe ceifou a vida, em 2006, aos 38 anos.
Guardados próximos ao cume da mais alta montanha do mundo, os restos mortais de Vitor Negrete ali permanecem como um lembrete avisando a todos que ele se foi do mesmo modo com que sempre conduziu a sua jornada terrena: no amor incondicional pela liberdade, na vontade contagiante de viver, no desejo de sempre superar novos desafios e – sobretudo – na lealdade à família, aos amigos, aos valores e aos princípios nos quais acreditava e que tanto defendia.
Esses fragmentos, que sua esposa, Marina Soler Jorge, foi recolhendo ao longo dos anos de companheirismo, são sementes plantadas a quatro mãos, semeadas a cada regresso de Negrete. Retratos da apaixonante trajetória do montanhista que ela agora divide com a gente no livro Espírito livre – Da Transamazônica ao Everest, recémlançado pela Editora Rocky Mountain. Nele, Marina compartilha detalhes da personalidade marcante e do lado humanitário e profissional de um dos maiores alpinistas brasileiros.
Como foi que surgiu a idéia de escrever esse livro?
Foi em 2005. O Vitor ainda estava vivo e nós víamos que muitas pessoas lançavam livros sobre as viagens que faziam. Às vezes, essas aventuras nem eram tão desafiantes. Então, pensamos: por que não publicar as experiências do Vitor? Conversamos com o Caco Alzugaray, publisher da Editora Rocky Mountain e presidente-executivo da Editora Três. Ele nos incentivou muito e disse que publicaria o livro. Começamos a escrevê-lo. Toda vez que partia para uma nova aventura, Vitor ia gravando tudo o que acontecia na viagem. Depois, eu transcrevia as fitas e trabalhava na redação do texto. A idéia era reunir esse material e, posteriormente, publicá-lo.
Quanto tempo demorou para concluir o livro? A edição ficou como você imaginava? O que o Vitor pensaria dela?
Demorei quase dois anos e acho que a edição ficou bem melhor do que eu esperava. Tem muitas fotos e está caprichada. Acho que o Vitor deve estar muito feliz com o livro, pois ele é a concretização de um projeto nosso que continuou, apesar de sua morte.
O livro seria o mesmo se tivesse sido lançado pelo Vitor?
Quanto ao conteúdo, imagino que seria praticamente idêntico, no sentido de que relataríamos as mesmas aventuras. Quanto à forma, a narração seria na primeira pessoa, e não na terceira – afinal, a idéia era de o Vitor ser o autor. O meu nome nem sequer apareceria, pois eu seria uma espécie de ghost writer. Os capítulos finais provavelmente seriam mais ricos em detalhes, pois meu marido descreveria minuciosamente o que havia acontecido em sua escalada ao Everest, no Himalaia. Certamente, essas histórias teriam mais emoção, pois teriam o seu toque pessoal. Como ele morreu e eu não tinha as fitas gravadas, procurei me lembrar de fatos que ele havia me contado anteriormente e utilizei os relatos de seu diário de viagem para escrever essa parte do livro.
Você contou com alguma ajuda para escrever sobre as outras expedições de Vitor?
No capítulo que relata a escalada de Vitor no Glaciar dos Polacos (Aconcágua), ao lado de Ana Elisa Boscarioli, a primeira brasileira a chegar ao topo daquela montanha, pedi ajuda para a própria Ana Elisa, que se lembrava dos detalhes de toda a viagem. Para escrever sobre a conquista da Parede Sul, também no Aconcágua, pedi ao Rodrigo Rainere, amigo e companheiro de alpinismo do Vitor, que me deixasse ler o rascunho do livro que ele pretendia lançar sobre essa expedição.
De todas as histórias que você conta neste livro, qual é a que você mais gosta?
A viagem pela Transamazônica de bicicleta é, na minha opinião, uma das mais interessantes, pois o Vitor, o Osvaldo Stella e o Igor Walter Alexandre ainda eram bastante jovens e viveram coisas muito fortes por lá, como acompanhar o caso dos meninos emasculados em Altamira (PA), que os marcou muito. Além disso, ainda nessa mesma aventura, eles pegaram doenças, passaram fome, conviveram com gente muito pobre, mas também muito generosa, e amadureceram bastante. Depois, gosto da escalada da Face Sul, uma aventura extremamente emocionante que mostra o sangue-frio e o quanto de preparo técnico Vitor e Rodrigo Rainere tinham.
Pelo que li no livro, você quase não ia nas viagens do Vitor. Como é ficar em casa sabendo que o companheiro está enfrentando todo tipo de risco?
É muito difícil. Mas a maior angústia era no momento em que o Vitor começava a subir o cume da montanha. Eu ficava bastante preocupada, pois sabia que essa era a parte mais perigosa de qualquer expedição.
Qual foi a maior dificuldade que você teve para escrever esse livro?
Foi o início do trabalho. A morte do Vitor era bastante recente e as lembranças ainda eram muito doloridas.
E a maior recompensa?
Ver o livro pronto e publicado.
No livro, você conta em algumas passagens que teria tido uma intuição, como a de quando estava namorando e recebeu o aviso de que o Vitor não viveria muito tempo. Ou mesmo a certeza de que havia acontecido algo com ele no Himalaia, apesar de não haver razões plausíveis para a sua preocupação. Essas intuições acontecem sempre? Por conta delas, você se tornou espírita? Ou tem outra religião?
Acredito na existência de uma vida após a morte, mas não sou espírita, apenas espiritualista. Sonho bastante com o Vitor. Numa das vezes, sonhei, acordei, abracei-o e voltei a dormir. Na manhã seguinte, sabia que tinha sonhado, só que aquele sonho era muito real.
Normalmente, as pessoas fazem rituais de despedida da pessoa que morreu (enterro, missa), o que ajuda quem está vivo a elaborar melhor a perda. No seu caso, já que o corpo do Vitor ficou no Himalaia, como foi que você encarou isso?
Vitor já estava no Himalaia havia dois meses, quando faleceu. Pensei que não poder enterrá-lo seria bem difícil. Mas, como eu sabia que ele não iria voltar, procurei resolver a questão interiormente e aceitar a sua morte. Para não deixar o corpo do Vitor no meio de uma trilha do Everest, o Rodrigo Rainere pediu que os sherpas o retirassem de lá e o cobrissem com pedras. Então, não dá nem para saber onde o Vitor está enterrado. De qualquer modo, seus restos mortais permanecem lá no alto da montanha, a mais de 8 mil metros de altura.
Em uma entrevista a PLANETA, um pouco antes de ir para o Himalaia, em 2006, Vitor revelou que escalar é a arte de resolver problemas, superar limites e reconhecer as próprias deficiências. Se ele pensava dessa forma e era cuidadoso com a logística das viagens, por que decidiu subir o pico do Everest sem o auxílio de sherpas?
Vitor sempre procurava aumentar o grau de dificuldade de suas escaladas, desde que se sentisse bem para isso. Ele também nunca gostou de ter de subir uma montanha acompanhado dos sherpas. Era como se estivesse sendo cuidado por babás. Por isso, quando achou que as condições permitiriam a escalada sem oxigênio e sozinho, ele resolveu tentar chegar ao cume, como sempre sonhou.
O que você mais admirava nele?
Vitor vivia no presente e não se angustiava pelo que poderia acontecer no futuro. Para mim, ele também tinha uma outra grande qualidade, que era o seu lado prático de lidar com os problemas. Se ele tivesse alguma dificuldade nas viagens, na logística delas e mesmo em casa, nas tarefas domésticas, encarava de frente e ia logo resolvendo a situação.
Qual a mensagem que você deixa aqui para os amigos e fãs de Vitor?
Devemos tentar curtir o presente e fazer mais aquilo que gostamos.
Movido a desafios
Vitor Negrete fez várias escaladas ao Monte Aconcágua, incluindo a mais difícil e perigosa, a Face Sul, com Rodrigo Rainere, em 2002, feito inédito para brasileiros. Sozinho e sem uso de cordas, também escalou a Via Polacos e várias vezes a normal (Nordeste), uma delas em pleno inverno (2004). Em 2005, ao lado de Rodrigo Rainere, escalou o monte Everest – dessa vez, com o auxílio de cilindros de oxigênio suplementar. Faleceu em maio de 2006, após ter escalado o Everest sem oxigênio suplementar. Desde 2001, praticava corrida de aventura, quando fez a última Expedição Mata Atlântica (EMA), no Pará, e fazia parte da equipe Try On Landscape de Corridas de Aventura.
Engenheiro de alimentos pela Unicamp, Vitor desde 2002 ensinava agricultores e uma comunidade quilombola no Vale do Ribeira, no sul do Estado de São Paulo, a preparar alimentos pré-industrializados (sobretudo receitas à base de banana, fruta abundante na região), para a comercialização dos produtos e sobrevivência econômica dessas comunidades carentes.
SERVIÇO
Espírito livre – Da Transamazônica ao Everest – Como Vitor Negrete chegou ao topo do mundo, Marina Soler Jorge, Editora Rocky Mountain, 182 páginas, R$ 34,90.
Foto principal: Arquivo Pessoal