Abaré: Um barco movido à saúde e alegria
Sob o forte sol equatoriano, embarcação transporta saúde e alegria pelas águas do rio Tapajós, levando esperança aos povos da floresta, onde a visita regular do hospital flutuante é a única forma de assistência médica disponível
Por Fabíola Musarra
Nem só do Círio de Nazaré (PA) e do Festival de Paritins (AM) – duas de suas principais manifestações populares – vive o Norte do País. A magia dos povos da floresta e a beleza selvagem de uma região que abriga a principal floresta do planeta – a Amazônica – seduzem e encantam muita gente, constituindo-se num dos roteiros mais procurados pelos turistas. E é exatamente abaixo da linha do Equador, num solo de clima quente e úmido, bem típico das florestas tropicais, com temperatura média anual que varia de 25ºC a 28ºC, que fica o Estado do Pará, o endereço do Saúde e Alegria (PSA), um dos mais eficientes (e criativos) projetos de assistência social do Brasil.
Criado em 1985, o projeto integrado por uma equipe interdisciplinar atua em três cidades do oeste do Pará: Aveiro, Belterra e Santarém, onde é sua sede. Este município, por sinal, detém alguns dos mais concorridos cartões-postais do Estado: o rio Tapajós, um dos principais afluentes da margem direita do Amazonas. No verão, com a redução do volume de água, é essa extensa avenida fluvial que revela 132 quilômetros de praias de águas translúcidas e areias branquinhas. Em frente à orla de Santarém, a foz é palco de outro memorável espetáculo: o encontro de águas dos rios Tapajós e Amazonas, quando as azul-esverdeadas do primeiro juntam-se as de cor barrenta do maior rio do mundo e correm paralelas sem se misturar ao longo de muitos quilômetros, desenhando um cenário paradisíaco a cada dia.
Mas é na floresta atrás das praias fluviais situadas nas duas margens do rio Tapajós que vive a maior parte das 30 mil pessoas de 143 comunidades atendidas pelo PSA. Povoada por lendas, botos cor-de-rosa e tantos outros personagens do folclore nacional, esta região privilegiada em recursos naturais infelizmente também vem sendo “habitada” pelo desmatamento.
Sem saber como deter a destruição do meio ambiente e nem como explorar de modo sustentável as suas riquezas e potencialidades, esses povos empobrecem a cada dia. Essa, aliás, é uma das razões que motiva o pessoal do PSA visitar essas comunidades. Nelas, realiza programas de desenvolvimento comunitário nas áreas de saúde e odontológica, organização comunitária, economia da floresta, educação, cultura e comunicação.
Entre os vários programas do PSA – tem o Circo Mocorongo, tem um mercado com produtos que preservam a identidade cultural dos povos da Amazônia e muito mais –, o Abaré é uma atração à parte. Doado em regime de comodato ao projeto pela ONG holandesa Terre dês Hommes, o barco de R$ 2,6 milhões é um hospital flutuante que desliza pelas margens do rio Tapajós. Também é a organização holandesa que financia o combustível e os profissionais que trabalham na embarcação – além de médicos, dentistas, enfermeiros, práticos, marinheiros e cozinheiras, palhaços, recreadores e arte-educadores se juntam à equipe arrancando sorrisos e educando pessoas.
Construída para enfrentar as condições amazônicas de secas e enchentes do rio Tapajós, a pioneira unidade móvel de saúde está equipada com centro cirúrgico, laboratório de análises clínicas e consultórios médicos, odontológico e de obstetrícia.
Também dispõe de equipamentos de comunicação e educação, com espaços para palestras e oficinas, e uma “ambulancha” para o resgate de doentes nos casos mais emergenciais. São em suas dependências que as comunidades locais (ribeirinhos, indígenas, quilombolas) são atendidas, incluindo os, caboclos que moram nas casas sobre palafitas. Conhecido como o povo das águas, os caboclos resultam de um processo de mestiçagem e aculturação dos índios com os colonizadores portugueses dos séculos 16 e 17.
A tarefa no interior da embarcação não é fácil, mas ali ninguém reclama. Nem do calor esturricante nem dos balanços e percalços do “caminho”. Ainda bem cedinho, às 5 horas (7 horas em Brasília), começa mais um dia de trabalho: enquanto uns tripulantes ligam os dois motores propulsores a diesel, outros supervisionam cada um dos ambientes do barco, conferindo se tudo está limpo e em ordem. Afinal, às 7h30, o Abaré começa a navegar, cumprindo o seu destino de promover aos povos da floresta o acesso aos programas de educação básica, como pré-natal, planejamento familiar, saúde oral e saúde da criança, além de realizar exames de rotina, atendimentos médicos e ambulatoriais, vacinações e pequenas cirurgias.
Os lugares visitados pela embarcação dividem-se segundo a margem do rio. À direita está a floresta nacional Tapajós, enquanto a reserva extrativista Tapajós-Arapiuns fica à esquerda. Em média, a equipe realiza de 30 a 50 consultas em cada um dos períodos (manhã e tarde) que presta assistência aos povoados que ali se localizam, muitos deles totalmente isolados do resto do mundo. Em dias mais tumultuados, esse número praticamente dobra. Mas nem mesmo o excesso de trabalho e intempéries climáticas equatorianas desvia o Abaré de sua rota e nem os seus integrantes do lema da ONG: promover saúde para o corpo e alegria para a alma.
Pelas águas do Tapajós, a tripulação segue sua incessante trajetória, cumprindo com determinação a tarefa de prevenir doenças e, sobretudo, salvar vidas. Embora levem a missão extremamente a sério, os profissionais embarcados cumprem uma rotina movida à alegria: as orientações aos “passageiros” são dadas de forma lúdica. A idéia é que as crianças e até mesmos os adultos aprendam as lições brincando. É com esse espírito que o Abaré visita as comunidades ribeirinhas. Tão logo atraca, os marinheiros partem em voadeiras, como as lanchas são chamadas na Amazônia, para buscar os pacientes que se aglomeram na praia.
Diariamente, na popa do Abaré desembarcam dezenas de pessoas, entre crianças, idosos, gestantes e outros. Depois de ter se cadastrado, os pequenos são recebidos pelo palhaço Magnólio. Outras vezes, a recepção fica a cargo de uma palhaçinha, que na vida real é uma arte-educadora. Juntos, eles riem, brincam, se descontraem. Depois da diversão, assistem a uma aula sobre escovação de dentes, com a professora “dona Escova”, que ensina como devem fazer para escovar os dentes direitinho.
Vez ou outra, o silêncio das águas e o burburinho da mata amazônica são interrompidos por algo inesperado, como o ocorrido com Erito. O garoto tinha apenas nove meses quando seus pais foram pedir ajuda ao pessoal do Abaré, que estava atracado à direita do rio Tapajós. Detalhe: a canoa que conduzia a família tinha de atravessar da margem esquerda para a direita, percorrendo uma larga extensão do rio. No trajeto de mais de 15 quilômetros, a mãe aflita carregava no colo o bebê inconsciente, numa situação clínica crítica.
“Erito já estava com uma forte diarreia há mais de um mês. Quando nós vimos que o caso dele era grave, fomos procurar um pajé. Ele benzeu, rezou, mas disse que não ia dar jeito”, conta Estrela dos Santos Oliveira, mãe do garoto. Foi o próprio pajé que aconselhou os pais a procurar auxílio na cidade. O casal, entretanto, não tinha como ir, pois morava longe, num povoado onde um barco para a cidade só passa duas vezes na semana. Para piorar, a distância para Santarém é de 15 horas de viagem.
No meio de tanto desespero, Lucivaldo Caetano Monteiro, o pai do menino, soube que o Abaré estava na outra margem do rio. O casal foi até lá. Monteiro recorda que já havia ouvido falar da embarcação, mas que não “tinha muita fé nela, não”, somente passando a acreditar quando estava dentro dela vendo o filho ser socorrido. “Não tínhamos muita esperança que Erito fosse salvo, porém, os doutores nos ajudaram muito. Graças a eles, meu filho está vivo”, emociona-se ele.
No interior do Abaré, a equipe que testemunhou o episódio, também não o esquece. Caso do médico Fábio Tozzi. Ele recorda que Erito foi praticamente ressuscitado, pois já estava há vários dias em estado de coma, apresentando ainda um quadro infeccioso bastante grave proveniente de uma diarreia. O atendimento foi feito em diversas etapas até tirar a criança daquela situação crítica e depois transportá-la até Santarém, levando todos os equipamentos disponíveis no barco: monitorização de saturação de oxigênio, eletrocardiograma, soro, secção venosa, antibiótico. Enfim, tudo que assegurasse a ida do menino até o pronto-socorro de Santarém, onde ele seria tratado com recursos mais adequados. “Depois, tivemos a grande satisfação de ver menino vivo e feliz com seus pais”, recorda o médico.
Casos como o de Erito multiplicam-se pela Amazônia paraense, trazendo alívio e auxílio para as comunidades que se espalham pela região. São pessoas simples. Gente humilde, para quem a visita regular do Abaré é a única forma de assistência médica disponível. Assim, a chegada da embarcação nas praias fluviais do rio Tapajós traz alegria. E, quando parte, deixa sempre plantada a semente da esperança no olhar de quem fica.
Na bagagem, garra e determinação
O Projeto Saúde e Alegria nasceu há 15 anos, quando o então jovem estudante de infectologia Eugênio Scannavino Netto pegou uma mochila e colocou os pés na estrada rumo ao Norte do País. No Pará, constatou que o povo mocorongo (assim são chamados os nativos de Santarém e redondezas) era vítima de várias doenças por falta de informação sobre cuidados básicos com a saúde. Inicialmente, começou a ensinar as pessoas desses povoados da Amazônia paraense a combater a desnutrição e a diarreia – até então uma das maiores responsáveis pelos altos índices de mortalidade infantil da região. Nas “aulas”, fornecia dicas simples de higiene pessoal, gravidez, doenças sexualmente transmissíveis, saúde bucal e condições sanitárias, explicando como usar do cloro para tratar a água, preparar o soro caseiro, tratar o lixo e o esgoto e construir pisos de cimento para impermeabilizar as fossas sanitárias.
Ainda entre 1984 e 1985, ao lado da arte-educadora Márcia Silveira Gama, então sua companheira, Scannavino Netto fez uma parceria com a prefeitura local nas zonas rurais de Santarém, ampliando o número de pessoas beneficiadas com suas dicas práticas de saúde e educação. Posteriormente, para garantir a continuidade dessas ações e a maior independência do programa, criou o Centro de Estudos Avançados de Promoção Social e Ambiental (Ceaps), mais conhecido popularmente como Projeto Saúde e Alegria. Desde que foi idealizado, o projeto realizou muito mais do que atendimentos médicos. Promoveu também ações de prevenção treinando voluntários locais e criando uma rede de agentes multiplicadores.
Ao mesmo tempo, as gincanas e circos mambembes tão comuns na região serviram de inspiração para a fundação do Circo Mocorongo. O espetáculo ainda agora é feito com a participação da comunidade visitada e inclui brincadeiras simples, para ensinar coisas como higiene bucal. Ao lado da educação dada no picadeiro do circo, a ONG foi formando ao longo dos anos uma rede de agentes comunitários e outra de radioamadores. São os seus integrantes que atualmente organizam as lições de cuidado básico à população, além de tornarem mais ágeis as remoções de urgência.
A família PSA foi crescendo, em tamanho e recursos – o PSA começou a prestar assistência às populações ribeirinhas no barco Saúde e Alegria, que ainda hoje flutua pelas águas do Tapajós. Em 2006, Eugênio Scannavino Netto ampliou e modernizou a “frota”, com o itinerante posto de saúde Abaré. Embora seja o “pai” do projeto é na distante cidade de São Paulo que o médico paulistano consegue ajudar mais efetivamente as 143 comunidades ribeirinhas dos rios Tapajós e Arapiuns. Afinal, é ele que faz toda a articulação com órgãos governamentais e empresários do Brasil e do Exterior, concretizando novas parcerias e levantando de fundos capazes de assegurar o futuro da ONG que fundou.
O perseverante trabalho do infectologista e de sua equipe, porém, foi recompensado. Desde que foi implantado na década de 80, os altos índices de diarreia, verminoses, doenças de pele e enfermidades decorrentes de falta de vacina diminuíram na região do Tapajós. O mesmo aconteceu com mortalidade infantil, que foi reduzida pela metade, segundo uma pesquisa realizada por José de Jesus Sousa Lemos, da Universidade Federal do Ceará, em 2000. Em seu estudo, foi constatado que fora das regiões alcançadas pelo projeto, a taxa de mortalidade até um ano era de 52 crianças por mil nascidas vivas. Nas áreas atendidas, 27 por mil, uma vitória e tanto para quem deixou de lado todo o conforto de casa e partiu rumo a um destino selvagem e desconhecido, levando consigo apenas uma única bagagem: a determinação de ser útil ao seu semelhante.
Para saber mais
Acompanhe o dia a dia dos profissionais do Abaré no Blog da Rede Mocoronga: http://abare.redemocoronga.org.br