Por Fabíola Musarra
Declarado pela Unesco como Patrimônio Mundial Natural em 2000, o Pantanal é uma região privilegiada em termos de beleza e biodiversidade. É ao mesmo tempo berçário e um gigantesco laboratório de pesquisas para a preservação de espécies ameaçadas de extinção que ali vivem. Caso das araras-azuis que hoje não correm mais tanto o risco de desaparecer graças ao trabalho da bióloga Neiva Guedes
Araras, feras, porções de natureza intacta a perder de vista. Essas foram as imagens que me vieram à mente ao ser convidada para ir ao Pantanal. Parti sem saber direito o que iria encontrar. Primeiro, pela extensão territorial dessa região brasileira. Com cerca de 140 mil quilômetros quadrados, corresponde a 1,5 vezes o tamanho de Portugal ou – se preferir – o da Bélgica, Suíça, Holanda e Portugal juntos. Assim, não tinha noção em qual dos pantanais ficaria. Depois, pelas condições topográficas e climáticas do lugar, uma região que convive com secas e cheias, dependendo da época do ano.
Foi com essas interrogações que desembarquei em Campo Grande (MS) com um grupo de jornalistas. Lá, iríamos conhecer o Projeto Arara Azul, uma iniciativa que vem sendo desenvolvida pela bióloga Neiva Guedes, com o objetivo de proteger a espécie.
Como previsto, na manhã seguinte, partimos em uma estrada de terra rumo à Pousada Araraúna, onde fica uma das bases do projeto. No percurso de cinco horas, como aconteceria em toda a viagem, uma cena de pura contradição: cenários naturais praticamente intocados intercalados por enormes áreas devastadas. O verde do cerrado em contraste com a lama da estrada, ainda escorregadia devido à forte chuva que havia acabado de cair.
Silêncio interrompido, volta e meia, pelo vôo de um tucano, por seriemas que invadiam a “rodovia” ou por rebanhos de gado nelore, raça muito cultivada nesse pedaço de Brasil, cuja base da economia é a agropecuária.
É impossível viajar por aqui sem ficar hipnotizado pelas exuberantes paisagens que desfilam diante do olhar. Mais impossível ainda é percorrer esse trajeto sem ficar zen. Fazer uma prece em silêncio para não quebrar o encanto do espetáculo de sons e de luzes desenhado ao longo dos séculos pelos deuses da natureza. Entrar num estado contemplativo e agradecer baixinho por estar em contato com cores e aromas de um dos cenários mais exóticos em termos de biodiversidade do planeta.
Na contramão da história, é impossível também não ser invadido pela impotência e pela sensação “veja antes que tudo acabe!” Sentimentos que vão se solidificando diante da constatação do cruel desmatamento e queimadas que ali vêm sendo promovidos por fazendeiros e empreendimentos. Ações predatórias realizadas sem critério, embora satélites permanentemente monitorem esse extenso território batizado de Pantanal, dos quais 34,27% ficam no Mato Grosso e 65,73% no Mato Grosso do Sul.
À base da garra e alma – Mas é durante o trajeto de 284 quilômetros rumo à Pousada Araraúna que se pode desfrutar de paisagens intactas e conhecer projetos de preservação feitos à base da garra e alma de pantaneiros e pesquisadores. Enfim, de solitários exploradores que, movidos à paixão, diariamente vão a campo perseguindo sua missão numa árdua batalha, ora travada contra as difíceis condições geográficas da região, ora contra a escassez de recursos. Carências de toda ordem: desde a falta de pessoas para integrar a equipe e de equipamentos que possibilitem a pesquisa até verbas que tornem viável a sua concretização.
Ao chegarmos ao nosso destino, David de Brito Albuquerque, gerente da pousada, nos mostrou nossas dependências e as existentes na fazenda. Ela faz parte da Santa Emília, propriedade para o Desenvolvimento do Estado e Região do Pantanal (Uniderp), em Aquidauana, no Pantanal do Rio Negro, e é uma base de observação permanente da equipe de Neiva. Entre um chalé e outro, abriga várias espécies de árvores nativas, incluindo a acuri e a bocaiuva, duas palmeiras cujos cocos alimentam as araras-azuis.
Depois do almoço, sob um calor de quase 45ºC, começamos a entender na prática o que é viver nesta parte do Pantanal e o amor da bióloga por essas aves. Todos os anos desde que começou o projeto, entre os meses de março e julho (época da reprodução da ave), ela deixa sua casa em Campo Grande e parte em direção ao Pantanal sul-mato-grossense.
No volante de uma Hilux Toyota, acompanhada por assistentes, percorre quilômetros de estradas esburacadas, pastagens e campos alagados para visitar os mais de 350 ninhos naturais e cerca de 200 artificiais que cadastrou em uma área de 450 mil hectares.
Desta vez, porém, além da bióloga Andréia Carvalho Macieira e de Cezar Corrêa, assistente de campo, Neiva nos conduziria a uma das áreas pantaneiras onde monitora as araras-azuis. Divididos em grupos, partimos em picapes mato a dentro. Bem adiante, os veículos pararam e seguimos a pé por um matagal fechado até chegar em um local onde havia um ninho e onde iríamos conhecer um filhotinho da espécie.
A jornada não é fácil. Mesmo com o intenso calor, é preciso percorrer a trilha com calça e mangas compridas e se untar de repelente. Apesar de todos esses cuidados, os esfomeados pernilongos e insetos não perdoam aqueles que ousam invadir sua propriedade e picam sem dó nem piedade os visitantes atrevidos, como nós. Por sua vez, as araras-azuis também não facilitam em nada o trabalho do pessoal do projeto. Elas costumam construir seus ninhos em cavidades nos troncos de manduvi, uma árvore de aproximadamente dez metros ou mais, típica do Pantanal.
Geralmente, essas cavidades ficam a cinco, seis metros do chão. Alcançá-las exige preparo físico, técnica e equipamentos de alpinismo. Aos 43 anos, Cezar é quem se incumbe da tarefa. De segunda-feira a sábado, ele mora na Araraúna e visita em média dez ninhos por dia. Considerando-se a altura dos ninhos, entre subidas e descidas, escala em torno de 100 m/dia ou de 600 m/semana. “Vistoríamos os ninhos para assegurar que os filhotes cheguem com saúde à vida adulta”, explica. “Os fazendeiros da região nos ajudam a descobrir ninhos. Toda vez que nos comunicam a existência de um deles, recebem como incentivo um kit com a camiseta e o boné do projeto”, prossegue.
Na realidade, o engajamento da população ao projeto é resultado de um trabalho de conscientização feita ao longo dos anos pela bióloga e equipe com as comunidades locais. “Hoje, além de nos avisarem sobre a descoberta de novos ninhos, muitos fazendeiros e habitantes daqui nos procuram para aprender a construir ninhos artificiais de madeira para as araras-azuis”, orgulha-se Neiva. Pela ajuda prestada, cada filhotinho de arara-azul é batizado com o nome da pessoa que descobriu o ninho ou com o de alguém especial para a equipe, numa espécie de homenagem.
“Esse aqui chama-se João Maria”, grita Cezar do alto do manduvi ao referir-se ao filhote recém-extraído do ninho. Ele é colocado em um balde e enviado ao solo, onde Neiva e Andréia o examinarão. Depois, será retirada uma mostra de sangue da ave, feito o anilhamento e colocado um microchip sob a pele dela (se for capturada, a tecnologia possibilitará que a equipe fique sabendo onde nasceu e quanto tempo viveu).
Só depois disso é que a ave será devolvida ao ninho. Posteriormente, o sangue coletado será enviado à Universidade de São Paulo (USP) para análise. “Apenas com esse exame é que ficaremos sabendo qual é o seu sexo”, explica Neiva. Ela acrescenta que esses procedimentos têm sido eficazes no controle do tráfego dos animais apreendidos pela fiscalização, indicando qual é o destino/origem deles.
No percurso de volta, assistimos a um show que a natureza bisaria várias vezes durante a nossa permanência naquele imenso zoológico a céu aberto: jacarés, cervos-do-pantanal, gaviões, tuiuiús, tucanos… Lembro-me de ter ficado impressionada com o conhecimento de Cezar sobre os animais que habitam a região, sobretudo os pássaros. Como uma enciclopédia, citava detalhes de como vivem, de seus predadores. Mais surpreendente ainda foi ver como os olhos pantaneiros captam lá longe espécies escondidas no meio da selva, animais e aves que nossos olhos e ouvidos urbanos jamais perceberiam, apesar de todo o silêncio da região.
Na manhã seguinte, fomos “navegar” pelo Correntoso, um afluente do Rio Negro. David conduziu nossa canoa. Havia chovido forte à noite e os bichos ainda dormiam ou estavam sem coragem de vir até as margens se exibir. Mesmo assim, vimos capivaras, ariranhas, jacarés e diversos tipos de pássaros. Descendente de índios e paraguaios, David é a própria expressão do pantanal. Nasceu em Aquidauana, tem 36 anos, é casado e pai de duas meninas.
Como Cezar, esbanja conhecimentos sobre a natureza que o cerca. Sabe de cor os hábitos alimentares dos animais, os horários mais prováveis de encontrá-los. Enfim, tem resposta para tudo… Durante o trajeto, ele conta sobre a vida da região. Diz que a época de cheias acaba de chegar, já cobrindo áreas que até dois, três dias estava esturricadas. “A seca deste ano foi uma das piores das últimas duas décadas. Muitos animais não resistiram”, entristece-se.
Para suportar o calor da região é preciso mesmo ter muitas resistência, ou ter nascido ali e estar acostumado com as temperaturas de mais de 40ºC. David confirma minha suspeita. Conta que o pantaneiro tem o hábito de levantar cedo e aproveitar o frescor da manhã para trabalhar. Por isso, alimenta-se bem no café da manhã, que geralmente é às 6 horas (lá não há horário de verão). O cardápio normalmente inclui arroz-de-carreteiro, feijão, carne e ovos. “Do meio-dia às 15 horas, o sol é muito forte, impossibilitando a execução de tarefas”, diz.
Paixão à primeira vista – Depois do frustrante passeio de canoa (os animais – entenda-se mamíferos, entre os quais a onça-pintada – decidiram não aparecer naquela manhã nublada), retornamos à fazenda. De lá, ainda teríamos um longo trecho a percorrer até o Refúgio Caiman, um dos patrocinadores do projeto. Agora, com o sol novamente castigando.
Com 53 mil hectares, o Caiman fica perto de Miranda, a 236 quilômetros de Campo Grande. Além de lar de diferentes animais silvestres o refúgio também é um “porto seguro” para a arara-azul. Nele encontra-se a sede do projeto, de onde Neiva coordena o trabalho de manejo e monitoramento das aves ao lado de mais cinco pessoas: as biólogas Andréia Carvalho Macieira e Grace Ferreira da Silva, a estagiária Roberta Boss e Cezar e sua esposa Neliane Corrêa, a responsável pela área de educação ambiental. A sede possui uma loja de suvenires e salas para palestras e oficinas.
Hoje, o projeto tem toda essa infraestrutura e conta com o apoio da WWF-US (Fundo Mundial para a Natureza), WWF-Brasil, Uniderp e Toyota, entre outros patrocinadores. Mas nem sempre foi assim. Ele nasceu em fins de 1989, quando Neiva fazia um curso de especialização. Ao conhecer de mais perto as araras-azuis, apaixonou-se por elas à primeira vista. Na época, tinha 27 anos e pouco se sabia sobre os habitats e a biologia da espécie. Intrigada, foi atrás de mais informações e descobriu que o número de aves silvestres caçadas era assustador – estima-se que só nos anos 1980 cerca de dez mil araras-azuis foram exportadas ilegalmente do país, fato que estava fazendo com que elas desaparecessem do Pantanal.
Diante dessas perspectivas, Neiva criou o Projeto Arara Azul com alguns apoios. “Nos primeiros quatro anos, estudamos cientificamente a espécie, pois muito pouco se sabia sobre ela”, lembra. Para isso, percorria a região em um jipe, subia em árvores para monitorar e descobrir ninhos, corria atrás de recursos e de voluntários para ajudá-la. Passados mais de 20 anos desde aquela época, a rotina da bióloga permanece inalterada. Aos 48 anos, ela ainda continua perseguindo o seu ideal e fazendo de tudo para garantir um futuro melhor para as araras-azuis. Sua dedicação vem sendo recompensada com várias vitórias, desde o engajamento das comunidades locais a sua causa até os prêmios internacionais.
Também é graças ao seu trabalho que hoje já se conhece boa parte do ciclo de vida, da genética e dos hábitos de vida das araras-azuis. Enfim, informações imprescindíveis para a preservação da espécie. E, se em 1990 apenas 1.500 haviam sido registradas na região, hoje mais de cinco mil delas ali proliferam e são monitoradas pela equipe. Elas vivem em 384 ninhos espalhados em mais de 50 fazendas da região de Nhecolândia, Abobral, Miranda e Nabileque.
As tarefas da equipe variam de acordo com o ciclo de reprodução da espécie. De março a junho, durante o período não reprodutivo, acontece a observação dos filhotes e o manejo e a recuperação dos ninhos. Já no período reprodutivo, de julho a fevereiro, é feito o monitoramento de ninhos ativos, com ovos ou filhotes. É durante este período que começa com a seca no Pantanal e termina com a cheia que acontece a observação do comportamento das araras-azuis. Quando necessário, a equipe também retira os ovos para incubação artificial e posteriormente os devolvem para o ninho e alimenta os filhotes. “Essas iniciativas possibilitam aumentar ainda mais a população das araras-azuis”, afirma convicta Neiva, sempre incansável em sua luta.
CÉDULA DE IDENTIDADE
Nome científico: anodorhyncus-hyacinthinus. Também é chamada de arara-azul, araraúna e arara-preta.
Endereço: Pantanal do Mato Grosso do Sul e do Mato Grosso, incluindo áreas do Pantanal boliviano e paraguaio. Também são encontradas no Amazonas, Pará e nas serras gerais que abrangem os Estados de Tocantins, Piauí, Maranhão e Bahia.
Maternidade: no Paltanal do Mato Grosso do Sul, 90% dos ninhos são encontrados nos manduvis.
Infância: nos três primeiros meses de vida, os filhotes permanecem no ninho e dependem totalmente dos pais.
Primeiro voo: de 107 a 120 dias.
Casamento: as araras-azuis só formam família depois dos 8, 9 anos de idade. Antes disso, vivem em grupos de jovens.
Relacionamento a dois: são fiéis – vivem com o mesmo companheiro até a morte. Somente depois disso é que procuram um novo parceiro.
Taxa de reprodução: baixa. A fêmea coloca de um a três ovos, sendo que somente um filhote sobrevive em cada reprodução, que acontece de dois em dois anos.
Vida em família: os pais dividem todas as tarefas de alimentação e cuidado com os filhotes.
Profissão: são tidas como engenheiras ambientais, pois ao aumentarem as cavidades dos troncos das árvores onde se reproduzem permitem que outras espécies posteriormente também utilizem o ninho.
Inimigos: baratas e formigas na fase em que são filhotes. Na idade adulta, a caça ilegal praticada pelos homens, incluindo os índios, que as capturam para usar suas penas para a confecção de artesanatos.
Tamanho: chegam a medir 1 m de comprimento.
Peso: em média, 1,3 quilo.
Expectativa de vida: de 30 a 35 anos na natureza. Em cativeiro, podem viver cerca de 50 anos.
PARA SABER MAIS
Projeto Arara-Azul – www.projetoararaazul.org.br
ONDE FICAR
Pousada Araraúna – Faz parte da Fazenda Santa Emília e localiza-se no município de Aquidauana, na região do Pantanal do Rio Negro, a 284 quilômetros de Campo Grande, a capital do Estado. É Um local de natureza rica, com quase dois mil hectares de mata e fauna nativas e belos rios. O cerrado do pantanal é um dos diferenciais deste ecossistema singular. Tel./faz: (67) 348-8190 e (67) 348-8191. Site: www.ararauna.com.br
Refúgio Ecológico Caiman – Fica em Miranda, no Pantanal Mato Grosso do Sul . É responsável pelo Programa de Conservação da Natureza, reconhecido nacional e internacionalmente, que consiste na manutenção de uma reserva particular de patrimônio natural em uma área de 5,6 mil hectares, além de apoiar diversos projetos de pesquisa e manejo de espécies. Tels. (11) 3706-1808 e (67) 3242-1450. Site: www.caiman.com.br