A nova família

Embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido a união estável entre casais homossexuais, o casamento civil entre eles ainda não é permitido por lei. Mesmo assim, essa “nova família brasileira” cada vez mais conquista o seu espaço sociedade e agora passa a usufruir de seus recém-adquiridos direitos   

 Por Fabíola Musarra

O perfil da família brasileira mudou e já não é mais o mesmo. Se até o início deste ano, a legislação vigente no País reconhecia apenas a união entre heterossexuais, em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a união estável entre pessoas do mesmo sexo, possibilitando que casais homossexuais – agora reconhecidos como entidade familiar –, passassem a ter alguns direitos. Segundo dados do censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, dos 190.755.799 habitantes que integram a população brasileira, apenas 60.002 (0,03%) são pessoas do mesmo sexo que vivem juntas. O Rio de Janeiro ocupa o primeiro lugar nesse ranking, com 10.170 (0,06%); seguido pelo Distrito Federal, com 1.239 (0,05%); e por São Paulo, com 16.872 (0,04%).

Ainda que continuem sendo uma minoria, esses casais cada vez mais vêm conquistando seu espaço na sociedade brasileira. O próprio IBGE é uma prova disso. Pela primeira vez desde que começou a fazer o censo demográfico em 2009, incluiu no questionário uma pergunta para contabilizar o número de cônjuges do mesmo sexo que moram juntas no País. “Essa questão foi incluída em função de termos detectado o crescimento desta parcela da população, além da pressão de várias entidades representantes da comunidade Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT)”, diz Marco Antonio.

Outro exemplo de que o Brasil está assumidamente mais colorido é a Petrobrás: 107 homossexuais (60 homens e 47 mulheres) integram o quadro funcional da empresa. Todos eles já usufruem o direito de incluir os seus companheiros no plano de saúde da estatal. A união entre pessoas do mesmo sexo e a homofobia (o medo, a aversão ou o ódio irracional aos homossexuais) também foram exibidos nas telinhas no horário nobre pela maior emissora de televisão nacional: capítulo sim e outro também, personagens de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, autores da novela Insensato Coração, da Rede Globo, denunciaram as discriminações e os crimes praticados contra essa parcela da população.

No Estado de São Paulo, a legislação que prevê punições para esses crimes está completando dez anos. Trata-se da Lei Estadual nº 10.948, de 2001, que estabelece sanções administrativas para práticas de discriminação por orientação sexual. “A legislação estadual prevê penalidade de advertência e multas para pessoas físicas ou jurídicas e suspensão ou cassação de licença estadual de funcionamento para estabelecimentos comerciais para aqueles que praticam a homofobia”, explica a defensora pública Maíra Coraci Diniz, coordenadora do Núcleo de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública de São Paulo.

O valor mínimo da multa por atos de homofobia é de R$ 17.450, mas não há uma quantia máxima estabelecida, pois isso vai depender do grau de gravidade do crime. Na capital paulista, os profissionais do Núcleo de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública de São Paulo dão orientação gratuita sobre direito homoafetivo, o que inclui a representação judicial e extraconjugal de vítimas de discriminação. Os defensores públicos também esclarecem dúvidas sobre a união estável e demais questões voltadas à comunidade LGBT.

A entidade atende na Avenida Liberdade nº 32, centro, de segunda a sexta-feira, das 7 horas às 9h30. Ali inicialmente é feita uma triagem. Em seguida, as pessoas são encaminhadas para uma das outras 23 unidades existentes na capital de São Paulo. Nos demais municípios paulistas, essas tarefas são exercidas pelos defensores públicos das unidades existentes em 28 cidades do Estado. Para saber os endereços dos núcleos estaduais, basta consultar o site www.defensoria.sp.gov.br

Sobrenome, não

A Constituição Federal proíbe qualquer forma de discriminação. Portanto, a mesma lei que rege a união estável para os casais heterossexuais também se aplica à união estável entre os casais homossexuais. Mas, embora o reconhecimento da união estável pelo STF tenha trazido avanços importantes na garantia de direitos dos relacionamentos homoafetivos, não há uma equiparação plena de direitos. Juridicamente, o casamento civil entre homossexuais, por exemplo, ainda não pode ser realizado. “Outras diferenças entre a união estável e o casamento civil são a possibilidade de se adotar o sobrenome do cônjuge (só possível no casamento) e na forma do recebimento da herança”, comenta Maíra.

Em contrapartida, hoje um companheiro pode autorizar a realização de uma cirurgia de emergência em seu parceiro e inscrevê-lo como dependente em clubes, seguros de vida e planos de saúde. Os dois também podem juntar rendimentos para financiar ou alugar um imóvel e fazer a declaração conjunta do Imposto de Renda. Em caso de prisão de um dos companheiros, o outro tem direito à visita íntima, assim como tem direito à licença-luto (faltar ao trabalho se o seu parceiro morrer) e à licença se a sua companheira tiver um filho. “O convivente também tem direito a usufruir dos bens do parceiro. E, em caso de separação, pode pedir pensão alimentícia ao seu companheiro”, informa Maíra.

A defensora pública esclarece que, para usufruir desses direitos, o casal deve requerer a Declaração de Convivência Marital e a Escritura de União Estável. Ambos os documentos são obtidos em um cartório de notas. Mas enquanto o primeiro tem como objetivo afirmar perante empresas, convênio médicos, clubes e outras entidades que o casal vive junto; o segundo firma um compromisso jurídico público entre o casal. Nele podem ser descritos bens móveis e imóveis, direitos e deveres, assim como determinações sobre pensão alimentícia e a educação e as obrigações em relação aos filhos ou menores de idade sob sua responsabilidade.

Para obter a Escritura de União Estável são necessários os seguintes documentos: o original da Cédula de Identidade, do CPF ou da carteira de habilitação e um comprovante de residência. Alguns cartórios exigem a presença de duas testemunhas maiores de idade. No caso de um ou ambos os parceiros serem separados ou divorciados, é necessário apresentar a certidão de casamento com a averbação da separação ou divórcio. O registro da Escritura de União Estável a ser realizado pelo cartório tem custo aproximado de R$ 268. Pode haver custos adicionais com reconhecimento de firma (assinatura), por exemplo.

Dois pais, nenhuma mãe

Pais de uma menina de 10 anos, Vasco e Júnior vivem em união estável há quase 20 anos. De bem com a vida, os três ilustram bem como são as novas famílias brasileiras

O casal Vasco Pedro da Gama Filho, 39 anos, e Dorival Pereira de Carvalho Júnior, 48 anos, é um típico representante do novo perfil da família brasileira. Juntos há quase 20 anos, os dois são os pais de Theodora Rafaela Carvalho da Gama, uma garotinha de 10 anos, fruto de um processo de adoção que durou um ano.

Como em um romance de telenovela, eles se encontraram em uma festa em 1992, em São José do Rio Preto, cidade do interior de São Paulo onde moravam. O amor à primeira vista fez com que fossem morar juntos já na mesma semana em que se conheceram. Em 1996, o casal mudou-se para Catanduva, um município com cerca de 110 mil habitantes, a 380 quilômetros da capital paulista.

Em vez das incompatibilidades e brigas domésticas tão comuns na rotina de tantos casais, a convivência diária fortaleceu os laços afetivos entre eles. “Já vivíamos uma relação estável e desejávamos ampliar a nossa família, ter os nossos próprios filhos. Decidimos adotar uma criança”, conta Vasco. A primeira tentativa para “engravidar” aconteceu em 1998, quando Vasco e Júnior preencheram os dados de um cadastro de adoção. O pedido foi indeferido pelo juiz sob a alegação de que eles tinham um relacionamento anormal, não possuíam casa própria nem uma situação econômica estável.

Em 1999 e em 2004, os dois tentaram adotar por vias informais – primeiro, um garotinho, e depois, uma menina. Novamente, não foram bem-sucedidos. Diante das sucessivas frustrações, em dezembro de 2004, optaram por “fazer a coisa certa e de modo legal”: novamente se cadastraram, entrando para a fila de adoção. Como a situação financeira do casal havia mudado – tinham estabilidade financeira e casa própria -, em junho de 2005, o mesmo juiz que anteriormente havia indeferido o primeiro pedido permitiu que se cadastrassem para a adoção. “Dessa vez, o juiz não tinha argumento para recusar o nosso pedido, pois tínhamos o parecer favorável da promotoria, além de termos passado nas avaliações psicológica e social”, diz Vasco.

“Já vivíamos uma relação estável e desejávamos ampliar a nossa família, ter os nossos próprios filhos. Decidimos adotar uma criança” Vasco da Gama Filho

Do deferimento à adoção de uma criança, o processo não demorou seis meses. Em dezembro de 2005, a juíza Sueli Juarez Alonso determinou que uma menina de um abrigo infantil da cidade fosse passar a semana do Natal e do Ano Novo na casa de Vasco e Júnior. “Fui falar com a juíza e lhe expliquei que não queríamos ficar com a criança apenas por uma semana, mas para sempre. Ela prometeu avaliar nosso caso”, recorda Vasco.

Promessa feita, promessa cumprida. No dia 23 de dezembro, Theodora, com 4 anos e 7 meses, foi morar com Vasco e Júnior. Depois de um mês, um psicólogo e uma assistente social foram à casa deles para observar como era a convivência entre os três. Em março de 2006, Theo, como carinhosamente os dois chamam a filha, foi adotada por Vasco, recebendo apenas o seu sobrenome. Ainda em março, Júnior entrou com o pedido para a adoção da menina.

Theodora foi batizada na Igreja Messiânica de Catanduva em agosto, mês do seu aniversário. “Como não sabíamos se eu conseguiria adotá-la, fui o padrinho. Afinal, padrinho é a mesma coisa que pai”, argumenta Júnior. Em setembro, o pedido foi deferido e Theo passou a usar legalmente o sobrenome dos dois. Na certidão de nascimento constam os nomes dos avós maternos e paternos, mas não há nome da mãe. “Ela chama um de paizinho e o outro de paizão”, orgulha-se Júnior.

Como Theo encara o fato? “Com naturalidade”, responde Vasco. Ele lembra que, logo que foi adotada, ela perguntava sobre a mãe biológica, porque se lembrava de eventuais visitas ao abrigo infantil (quase sempre bêbada ou drogada). “Hoje, Theo não pergunta mais. Às vezes, comenta que a mãe deve ter morrido”, acrescenta Júnior. Ele diz que conversam com a garota explicando que sua mãe biológica não deve ter tido condições de criá-la e que os três irão procurá-la quando Theo tiver 16, 18 anos e que, por ora, é melhor ela estudar e ser feliz.

Atualmente Theodora está no quarto ano do ensino fundamental. Segundo os pais, é ótima alluna, muito querida pelos professores, carinhosa e preocupada com os outros. Nunca foi discriminada pelos coleguinhas nem pela família deles pelo fato de seus pais serem gays. Ao contrário, é sempre convidada para as festas de aniversário dos amiguinhos, que por sua vez não faltam às dela. Também participa de todas as atividades de Vasco e de Júnior, incluindo a Semana de Diversidade, que anualmente eles ajudam a organizar em Catanduva, encerrada em 15 de novembro com uma Parada Gay.

“A Theodora é filha de homossexuais. Conversamos abertamente com ela sobre o nosso relacionamento e expomos nossos argumentos. Mesmo porque se escondermos e mentirmos sobre nossa relação, como ela poderá explicar a situação de nossa família para os outros?”, questiona Júnior.

Onde denunciar

Na cidade de São Paulo, quem for vítima de discriminação poderá apresentar a sua denúncia pessoalmente ao Núcleo Especializado de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública do Estado. Se preferir, também poderá fazê-lo por telefone, carta ou fax à Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania, sem necessidade da presença de um advogado. Ou ainda, dirigir-se à Coordenadoria de Assuntos da Diversidade Sexual da Prefeitura de São Paulo. Outros órgãos também atendem esses casos. Confira os endereços:

Defensoria Pública do Estado de São Paulo – Núcleo Especializadp de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito

Rua Boa Vista, 103, 7º andar, tel. (11) 3101-0155 ramal 137, centro, SP. Funciona de segunda a sexta-feira, das 10h às 17h (próximo ao Metrô São Bento).

E-mail: nucleo.discriminacao@defensoria.sp.gov.br

Site: www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/discriminacao

Coordenadoria de Políticas Públicas para Diversidade Sexual – Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado

Pátio do Colégio, 148, térreo, tel. (11) 3291-2600, centro, SP.

E-mail: ouvidoria@justiça.sp.gov.br

Site: www.justica.sp.gov.br

Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual (Cads)

Rua Líbero Badaró, 119, 6º andar, tel. (11) 3113-9748, centro, SP.

E-mail: diversidade@prefeitura.sp.gov.br

Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate à Homofobia

E-mail: centrodereferencia@prefeitura.sp.gov.br

Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi)

Rua Brigadeiro Tobias, 527, 3º andar, tels. (11) 3311-3556, 3311-3555, Luz, SP.

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