Festas Populares Brasileiras – Padre Cícero

Meu padim, padre Cícero

Por Fabíola Musarra

Em todo o Nordeste brasileiro não há quem não tenha ouvido falar do padim Ciço ou do Santo de Juazeiro, como o falecido padre Cícero Romão Batista é conhecido na região. Especialmente no Ceará, onde o religioso passou grande parte de sua vida – nasceu na antiga Vila Real de Crato em 1844 e morreu em Juazeiro do Norte, em 20 de julho de 1934. Embora no céu o sol mais uma vez castigasse impiedosamente a árida paisagem do sertão, aquele dia despontou negro no coração de mais de 80 mil pessoas. Em prantos e com profunda tristeza, elas conduziam o corpo do padre à Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde está sepultado ao pé do altar. Passados tantos anos de sua morte, ainda hoje é essa mesma igreja erguida em 1908 que acolhe milhares de fiéis nas missas diárias celebradas em memória do religioso. O ápice da devoção dedicada ao padre Cícero, porém, ocorre todo dia 20 de cada mês, quando a antiga igreja mal consegue abrigar a legião de romeiros que ali comparece.

Nessas datas, em sinal de luto e para homenagear o homem que consideram santo, os fiéis vindos dos mais distantes pontos do País, sobretudo do Nordeste, vestem-se de preto. Depois da missa, peregrinam até a imagem do padre Cícero, erguida em 1924. Esculpida pelo artista nordestino Armando Lacerda em 1969, está localizada na colina da Serra do Horto, o mesmo lugar onde o religioso fazia os seus retiros espirituais. Com 27 metros de altura, a estátua é objeto de intensa devoção popular. Aos pés dela, os romeiros fazem preces silenciosas. Oram baixinho. Imploram por graças que somente os anjos e os espíritos iluminados de Deus podem lhes conceder.

Desde menino, Cícero gostava de religião e de ouvir histórias de santos. Jovem, foi para Cajazeiras (Paraíba) estudar num colégio da cidade. Tinha, então, 16 anos e nenhuma posse, exceto a fé em Deus. De família humilde, teve de regressar ao Ceará dois anos depois. Seu pai havia morrido de cólera e era preciso cuidar da mãe e irmã. Perseverante, ingressou no Seminário de Fortaleza, em 1865. Foi ordenado presbítero em 1870. Um ano depois, foi nomeado vigário de Juazeiro do Norte e celebrou a sua primeira missa. No pequeno povoado cearense, o padre Cícero foi conquistando o respeito e a admiração do povo.

A fama de milagreiro surgiu depois de 18 anos de extrema dedicação ao sofrido povo do sertão. Nasceu precisamente em 6 de março de 1889, quando a beata Maria de Araújo não conseguiu engolir a hóstia da comunhão porque ela se transformou em sangue. O fato se repetiu muitas outras vezes. No dia 7 de julho, o reitor do Seminário do Crato organizou uma romaria até Juazeiro. Diante dos três mil fiéis que integravam a iniciativa, a hóstia novamente se transformou em sangue. Também médicos, engenheiros, políticos, especialistas, curiosos e muitas outras pessoas foram conferir de perto a veracidade do fenômeno.

Nessa altura, o fato já era considerado como um milagre pelo povo da região. A notícia da proeza atribuída ao padre Cícero também já havia ultrapassado as fronteiras do pequeno município do Ceará e ganhado o mundo. Juazeiro do Norte, então, se transformou em um centro de romaria e de devoção. A Igreja, porém, não gostou nem um pouco da versão e convocou o padre a comparecer ao episcopado em Fortaleza para explicar o acontecido. Em 1891, instituiu uma comissão para investigar o assunto, optando finalmente pela proibição do culto aos panos ensangüentados. Acusado de heresia, padre Cícero foi obrigado a se retratar publicamente em 1894. Como nunca desmentiu os fatos inexplicáveis, foi suspenso das ordens religiosas pelas autoridades eclesiásticas em 1897.

Recorreu à Cúria romana, mas jamais voltou a celebrar missas. Apesar disso, nunca não deixou de ser o guia espiritual de milhares de sertanejos que partiam de todos os cantos do Nordeste com destino a Juazeiro. Passava seus dias atendendo os fiéis em sua própria casa. Ao entardecer, saia na janela, de onde fazia sermões aconselhando as pessoas a abandonarem os vícios e maus hábitos, apontando ainda soluções para os pecados que insistiam em tentar a vida dos fiéis. Paralelamente, ditava as regras políticas da região. Em 1911, padre Cícero tornou-se o primeiro prefeito de Juazeiro, cargo que exerceu duas vezes. Em 1914, foi nomeado vice-governador do Ceará. Em 1926, elegeu-se deputado federal. Mas ele mesmo nunca gostou do poder – dizem que eram os seus assessores que governavam o Estado.

Padre Cícero morreu aos 90 anos, vítima de problemas renais. Quando faleceu estava quase cego e surdo, mas totalmente lúcido. Mesmo fraco e debilitado, jamais deixou de atender os romeiros. Rejeitado pela Igreja, mas venerado pelo povo. Pessoas humildes e sofridas, para quem padre Cícero inquestionavelmente é um santo. Prosseguem a dura vida do sertão, muitas vezes numa trajetória de fome, sede e até miséria. Na simplicidade de seu coração, abrigam a fé, a esperança e – mais do que tudo – a certeza de terem suas preces atendidas pelo padim Ciço, o mito popular mais poderoso do Nordeste que jamais deixou os seus devotos na mão.

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